O melhor suspense de 2022 acaba de estrear na Netflix e não te deixará piscar por 110 minutos
Às inclementes tensões raciais que margeiam a história das grandes potências mundiais de tempos em tempos junta-se um elemento ainda mais abrangedor, capaz de amalgamar negros e boa parcela de brancos num único grupo, tão plural como colérico: os pobres. De quando em quando, surgem, à guisa do que teria ocorrido na Inglaterra no século 12, paladinos da justiça social que reparam ignominiosas desigualdades à custa de crimes, tal como fazia o lendário Robin Hood. Até hoje ninguém sabe se o arqueiro mais habilidoso da Idade Média existiu de fato; mesmo assim, seu exemplo, o de um homem digno, revoltado com o destino cruel de ter de se conformar com a marginalidade — não obstante ter pleiteado o cargo de guarda do bosque do rei Ricardo Coração de Leão (1157-1199) —, inspira contendores do Reino Unido (e de todo o planeta) ainda hoje. Sentimentos como revolta, inconformidade, desespero, desalento, tudo quanto puder haver de mais melancólico no espírito humano, aflora naqueles momentos em que não resta muito mais com que se agarrar, ninho de ideias perigosas, cheias de um veneno muito eficaz.
“Passei por Aqui” (2022), do diretor britânico-iraniano Babak Anvari, avança mais uma casa quanto a discorrer sobre a vergonha da perpetuação da miséria e de cenários indignos para a vida centrando a história numa figura algo poética e dona de um modo de operação bastante peculiar. Heróis têm sobre o resto dos homens esse salvo-conduto: passar por cima das convenções a fim de garantir que se cumpram determinados quesitos, os realmente essenciais para que todos tenhamos o mínimo para atravessar de um dia para o outro com alguma segurança, sem medo de acabar se deparando com a humilhação de pedir, suplicar, implorar pelo pão que deveria ser de todos. A verdade incontornável é que quanto mais o homem espalha progresso por sobre a Terra, mais prosperam as iniquidades, as injustiças, os ódios, tudo no plural e em farta quantidade. Os candidatos a salvadores da pátria e do gênero humano desfilam com garbo invulgar por uma passarela de feiura, atirando aos rostos incrédulos seu olhar chispante, que ilumina, mas também queima.
Em seu roteiro, coescrito de Namsi Khan, Anvari destrincha a vida de Toby Nealey, o justiceiro das ilusões perdidas interpretado com o brilho habitual por George MacKay. Toby não pretende substituir sprays de tinta por arco e flecha (provavelmente nunca sequer tenha visto nada assim), até porque com eles a força de sua mensagem permanece por muito mais tempo. Já na introdução, o espectador vai tomando pé do tipo complexo, entre sonhador e delinquente, vivido por MacKay. Toby acredita com sinceridade que ao invadir e vandalizar mansões de ricaços londrinos — sem se apropriar de um alfinete — de algum
modo os está levando a refletir sobre a tirania que querendo ou não ajudam a espalhar. A ação, surpreendentemente ágil, tem por saldo a frase “Passei por aqui”, grafitada na parede da sala de estar, para que tal visão não saia da lembrança mesmo depois que várias demãos de novos revestimentos apaguem o recado do justiceiro, que a essa altura está acompanhando tudo pelo noticiário local, presa do orgulho silencioso que não pode partilhar com ninguém.
Com cuidado, o diretor apensa as sequências em que os temas sociais até então apenas sugeridos emergem com toda a energia. Toby dispunha da ajuda de Jay em suas empreitadas, mas o personagem de Percelle Ascott marca um encontro num café da vizinhança a fim de dizer que, a partir daquele instante, terá de declinar dos convites para curar o mundo, ou seja lá o que ele pensa que faz, porque sua namorada, Naz, Varada Sethu, está grávida. Jay é negro e Naz é uma imigrante hindu a caminho da formatura em direito numa instituição conceituada, em que só pode estudar graças à benemerência de filantropos como o juiz Hector Blake, excelente performance de Hugh Bonneville: ou seja, os dois, ao contrário de Toby, têm muito a perder.
É justamente com a entrada em cena de Blake que “Passei por Aqui” diz a que veio. A invasão do palacete do personagem de Bonneville termina mal para o anti-herói de MacKay. Anvari gira uma chave e o longa embarca num suspense hipnótico à medida que o magistrado vai se revelando um psicopata do calibre de Hannibal Lecter, de “O Silêncio dos Inocentes” (1991), de Jonathan Demme (1944-2017): rico, sofisticado, acima de qualquer suspeita e altamente perigoso. Bonneville rouba a cena ao protagonizar embates com quase todo o elenco, até que sobrevenha o desfecho e seja, afinal, desmascarado. Tudo tão sutil que quase se pode ouvir seus pensamentos mais macabros.